“Galpão, Pátria e Poesia. Três palavras consagradas, no final da madrugada se encontram pra clarear o dia, vão regendo a sinfonia de poetas e cantores, para que os madrugadores esperem o sol estribados, para alegrar nosso pago, com versos e melodias”

sábado, 7 de fevereiro de 2015

NOEL GUARANY - A INTENSIDADE DO GÊNIO DA MÚSICA QUE PAGOU CARO POR DEFENDER FERVOROSAMENTE O QUE ACREDITAVA

Noel Guarany
      Noel Borges do Canto Fabrício da Silva, o NOEL GUARANY, era descendente de italianos e índios guaranis, e nasceu em 26 de dezembro de 1941, na Bossoroca, então um distrito de São Luiz Gonzaga, Rio Grande do Sul.
      Noel aprendeu cedo a orgulhar-se da tradição combativa e libertária, da epopeia Guarany, e a região dos Sete Povos das Missões, respira até hoje o inconformismo diante da derrota de rebeliões contra o colonialismo. Este orgulho inscreveria no próprio nome, numa demonstração de sua escolha sobre de que lado iria ficar durante a vida: nascido Noel Borges do Canto Fabrício da Silva, poderia exibir o sobrenome de José Borges do Canto, comandante das tropas portuguesas que conquistaram em definitivo o território missioneiro. Mas preferiu evocar a porção de sangue índio que levava nas veias e chamar-se Noel Guarany.


Na adolescência, aprendeu, de maneira autodidata, o idioma guarani, bem como a compor, tocar e cantar.
      Aos 19 anos, foi servir o Exército no 3º Regimento de Cavalaria, em São Luiz Gonzaga. Ali, presenciou a conduta desonrada de altos oficiais, o que foi para ele um choque. "Não podia acreditar que militares graduados também roubassem. Aprendi mais tarde que o roubo e a corrupção foram os maiores amigos das ditaduras militares" — recordaria já maduro.
      A decisão de abandonar a caserna foi capital para que Noel Fabrício pudesse se tornar Noel Guarany. Uma vez concretizada, ele cruzou a fronteira da Argentina. Radicou-se na província de Corrientes, onde trabalhou como lenhador e balseiro. Durante a década de 1960, andou pela também província de Misiones, assim como pelo Paraguai, Uruguai, Mato Grosso e Bolívia.
      Convivendo e compartilhando o duro cotidiano com a gente simples do povo de todos esses lugares (ervateiros, balseiros, índios), Noel observou sua linguagem, sua musicalidade e suas formas de expressão. Retratou a vida dessas pessoas em canções como Lavadeira do Uruguai, composta em parceria com João Sampaio da Silva.
         Nos anos 50 e 60, crescia o poder da indústria fonográfica originária do USA e sediada no Rio e em São Paulo,  e segundo Noel Guarany "o rádio vivia a martelar alienações desleais ao povo sul-americano". Contra esta situação, Noel Guarany insurgiu-se, erguendo aquela que, desde o retorno ao Brasil, soube sem sombra de dúvidas que seria em suas próprias palavras, a sua bandeira que era cantar as coisas da sua terra.
      O resgate e redefinição da identidade missioneira a partir dos anos 60 é um dos episódios mais interessantes da cultura brasileira, não apenas por sua importância mas pela forma como se deu: espontaneamente, desde o seio do povo e totalmente à margem dos âmbitos letrados. Imprensa e universidade só vieram a dar-se conta do fenômeno depois que ele já havia ocorrido. Seus artífices foram artistas populares dotados de consciência, como Noel e seus parceiros — todos homens de sólida cultura, mas todos autodidatas.
       PEDRO ORTAÇA                 NOEL GUARANY                  CENAIR MAICÁ                 JAYME CAETANO BRAUN
      A evolução dos acontecimentos deu-se à margem, inclusive, do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), aliás Noel Guarany vivia às turras com a entidade.
No entanto, eram boas suas relações com um dos fundadores do movimento, Barbosa Lessa, de quem musicou poemas. É de Lessa uma das  melhores definição de Noel Guarany, escrita na capa do disco Destino Missioneiro, de 1973: "autêntico como cantor e como gente".

       O que Jayme Caetano Braun fez na poesia, com versos em espanhol e tratando de temas da história e da cultura da Argentina e do Uruguai, Noel fez na música ao trazer para cá ritmos que ouviu na Argentina e no Paraguai. Tinha enorme admiração por músicos dos países vizinhos, como Atahualpa Yupanqui, Antonio Tarragó Ros e Mario Millán Medina. Sua visão da identidade gaúcha não cabia na estreiteza das fronteiras políticas: definia-se como gaúcho e paralelamente como missioneiro, como brasileiro e também como latino-americano.
MARIO MILLÁN MEDINA
ANTONIO TARRAGÓ ROS
Atahualpa Yupanqui
       











Noel, viria a desentender-se com muita gente. Por exemplo, com a indústria fonográfica monopolista. Rompeu publicamente com as gravadoras RCA, RGE e EMI, que negligenciavam a divulgação de seus discos e não lhe repassavam o dinheiro referente aos direitos autorais, além de não adotarem os cuidados técnicos necessários, por exemplo na prensagem dos LPs. Vários de seus discos foram lançados por selos independentes — caso de Payador, Pampa, Guitarra gravado em parceria com Jayme Caetano Braun e lançado em 1976, um divisor de águas na música riograndense.
      Eram igualmente péssimas suas relações com os burocratas da Ordem dos Músicos, que chegou a fustigar publicamente em suas apresentações.
      Quem viu Noel Guarany no palco, aliás, conta que o que ele dizia no intervalo entre uma música e outra era um caso à parte: abria a boca para falar de tudo que estava errado. Frequentemente desacatava a gerência militar, levando ao êxtase a platéia — muitas vezes composta por estudantes para os quais cantava sem cobrar. Milico na minha frente/ não passa sem ser notado, cantou em Chamarrita de Galpão.
      Há uma gravação de um show realizado em 1979, no CD Destino Missioneiro, que recupera alguns desses momentos. Entre uma música e outra, Noel diz, por exemplo:
Eu tentei me solidarizar com os grevistas (refere-se a uma greve de metalúrgicos), tal como fiz aqui com os bancários, mas lembrei que aqui ainda eu consigo alguma coisa e que em São Paulo ou Rio de Janeiro eu sou visado. Chico Buarque quis cantar, não deixaram. E eu, pior ainda, porque eles pensam que o gaúcho é mais valente que os outros
     O aspecto propriamente musical de suas apresentações não era menos autêntico. Noel apresentava-se munido apenas da voz forte e do violão que sabia tocar magistralmente. Gostava de dizer que a música gaúcha começou a decair depois da introdução do primeiro instrumento alienígena: a gaita 3. Era, evidentemente, uma hipérbole: em Payador, Pampa, Guitarra deixou-se acompanhar pelo bandoneón de Raulito Barbosa.
       A carreira de Noel Guarany durou pouco. Mas os três lustros transcorridos de 1970 — quando venceu o VII Festival do Folclore Correntino ao lado de Cenair Maicá com a música Fandango na Fronteira em Santo Tomé, na Argentina — 1985 — quando deixou os palcos em protesto contra o tratamento dispensado pelas grandes gravadoras e pelo poder público à classe dos artistas -, foram suficientes para que ele mudasse para sempre a história da música no Rio Grande do Sul.
    Ainda ensaiaria um retorno em 1988, com o lançamento dos discos A Volta do Missioneiro, com Jorge Guedes e João Máximo e Troncos Missioneiros, este com Jayme, Cenair e Pedro Ortaça, e algumas apresentações. Mas uma doença degenerativa do sistema nervoso já o consumia de maneira irreversível. Passou os últimos anos recolhido em sua casa, em Santa Maria, muito debilitado e com alguns poucos lampejos de lucidez.
       Em abril de 1994, o jornal O Desgarrado, de Santa Cruz do Sul, foi visitá-lo. Foi a última vez que recebeu a imprensa antes passar à eternidade, o que ocorreria quatro anos depois. Já não conseguia articular idéias e responder às perguntas. Em sua memória, só restava nítida a lembrança dos amigos: Cenair, Jayme, Ortaça, Atahualpa Yupanqui e o uruguaio Aníbal Sampayo — e de como, em suas próprias palavras, "gostava de ser cantor".
      Morreu no dia 6 de outubro de 1998, na Casa de Saúde de Santa Maria, tendo sido enterrado em Bossoroca, sua terra natal.

TÚMULO DE NOEL GUARANY - BOSSOROCA RS.

Discografia

  •       1970 - Filosofia de Gaudério (com Cenair Maicá)
  • ·         1971 - Legendas Missioneiras
  • ·         1973 - Destino Missioneiro
  • ·         1975 - Sem Fronteiras
  • ·         1976 - Payador, Pampa, Guitarra (com Jayme Caetano Braun)
  • ·         1977 - Canto da Fronteira
  • ·         1978 - Canta Aureliano de Figueiredo Pinto
  • ·         1979 - De Pulperias
  • ·         1980 - Alma, Garra e Melodia
  • ·         1982 - Para o Que Olha Sem Ver
  • ·         1988 - A Volta do Missioneiro (com Jorge Guedes e João Máximo)
  •      1988 - De Pulperias ( Relançamento )
  •      1996 - 20 Preferidas
  •      1998 - Acervo Gaúcho
  •      2003 - Destino Missioneiro - (Ao Vivo - Remasterizado) é o registro de uma apresentação               realizada por Noel Guarany no cinema Glória na cidade de Santa Maria, em 1980.

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