Noel Guarany
Noel
Borges do Canto Fabrício da Silva, o NOEL GUARANY, era descendente de italianos
e índios guaranis, e nasceu em 26 de dezembro de 1941, na Bossoroca, então um
distrito de São Luiz Gonzaga, Rio Grande do Sul.
Noel
aprendeu cedo a orgulhar-se da tradição combativa e libertária, da epopeia
Guarany, e a região dos Sete Povos das Missões, respira até hoje o
inconformismo diante da derrota de rebeliões contra o colonialismo. Este
orgulho inscreveria no próprio nome, numa demonstração de sua escolha sobre de
que lado iria ficar durante a vida: nascido Noel Borges do Canto Fabrício da
Silva, poderia exibir o sobrenome de José Borges do Canto, comandante das
tropas portuguesas que conquistaram em definitivo o território missioneiro. Mas
preferiu evocar a porção de sangue índio que levava nas veias e chamar-se Noel
Guarany.
Na
adolescência, aprendeu, de maneira autodidata, o idioma guarani, bem como a
compor, tocar e cantar.
Aos
19 anos, foi servir o Exército no 3º Regimento de Cavalaria, em São Luiz
Gonzaga. Ali, presenciou a conduta desonrada de altos oficiais, o que foi para
ele um choque. "Não podia acreditar que militares graduados também
roubassem. Aprendi mais tarde que o roubo e a corrupção foram os maiores amigos
das ditaduras militares" — recordaria já maduro.
A
decisão de abandonar a caserna foi capital para que Noel Fabrício pudesse se
tornar Noel Guarany. Uma vez concretizada, ele cruzou a fronteira da Argentina.
Radicou-se na província de Corrientes, onde trabalhou como lenhador e balseiro.
Durante a década de 1960, andou pela também província de Misiones, assim como
pelo Paraguai, Uruguai, Mato Grosso e Bolívia.
Convivendo
e compartilhando o duro cotidiano com a gente simples do povo de todos esses
lugares (ervateiros, balseiros, índios), Noel observou sua linguagem, sua
musicalidade e suas formas de expressão. Retratou a vida dessas pessoas em
canções como Lavadeira do Uruguai, composta em parceria com João Sampaio da
Silva.
Nos
anos 50 e 60, crescia o poder da indústria fonográfica originária do USA e
sediada no Rio e em São Paulo, e segundo
Noel Guarany "o rádio vivia a martelar alienações desleais ao povo
sul-americano". Contra esta situação, Noel Guarany insurgiu-se, erguendo
aquela que, desde o retorno ao Brasil, soube sem sombra de dúvidas que seria em
suas próprias palavras, a sua bandeira que era cantar as coisas da sua terra.
O
resgate e redefinição da identidade missioneira a partir dos anos 60 é um dos
episódios mais interessantes da cultura brasileira, não apenas por sua
importância mas pela forma como se deu: espontaneamente, desde o seio do povo e
totalmente à margem dos âmbitos letrados. Imprensa e universidade só vieram a
dar-se conta do fenômeno depois que ele já havia ocorrido. Seus artífices foram
artistas populares dotados de consciência, como Noel e seus parceiros — todos
homens de sólida cultura, mas todos autodidatas.
PEDRO ORTAÇA NOEL GUARANY CENAIR MAICÁ JAYME CAETANO BRAUN
|
A
evolução dos acontecimentos deu-se à margem, inclusive, do Movimento
Tradicionalista Gaúcho (MTG), aliás Noel Guarany vivia às turras com a entidade.
No
entanto, eram boas suas relações com um dos fundadores do movimento, Barbosa
Lessa, de quem musicou poemas. É de Lessa uma das melhores definição de Noel Guarany, escrita na
capa do disco Destino Missioneiro, de 1973: "autêntico como cantor e como
gente".
O
que Jayme Caetano Braun fez na poesia, com versos em espanhol e tratando de
temas da história e da cultura da Argentina e do Uruguai, Noel fez
na música ao trazer para cá ritmos que ouviu na Argentina e no Paraguai. Tinha
enorme admiração por músicos dos países vizinhos, como Atahualpa Yupanqui,
Antonio Tarragó Ros e Mario Millán Medina. Sua visão da identidade gaúcha não
cabia na estreiteza das fronteiras políticas: definia-se como gaúcho e
paralelamente como missioneiro, como brasileiro e também como latino-americano.
MARIO MILLÁN MEDINA |
ANTONIO TARRAGÓ ROS |
Atahualpa Yupanqui |
Noel,
viria a desentender-se com muita gente. Por exemplo, com a indústria
fonográfica monopolista. Rompeu publicamente com as gravadoras RCA, RGE e EMI,
que negligenciavam a divulgação de seus discos e não lhe repassavam o dinheiro
referente aos direitos autorais, além de não adotarem os cuidados técnicos
necessários, por exemplo na prensagem dos LPs. Vários de seus discos foram
lançados por selos independentes — caso de Payador, Pampa, Guitarra gravado em
parceria com Jayme Caetano Braun e lançado em 1976, um divisor de águas na
música riograndense.
Eram
igualmente péssimas suas relações com os burocratas da Ordem dos Músicos, que
chegou a fustigar publicamente em suas apresentações.
Quem
viu Noel Guarany no palco, aliás, conta que o que ele dizia no intervalo entre
uma música e outra era um caso à parte: abria a boca para falar de tudo que
estava errado. Frequentemente desacatava a gerência militar, levando ao êxtase
a platéia — muitas vezes composta por estudantes para os quais cantava sem
cobrar. Milico na minha frente/ não passa sem ser notado, cantou em Chamarrita
de Galpão.
Há
uma gravação de um show realizado em 1979, no CD Destino Missioneiro, que
recupera alguns desses momentos. Entre uma música e outra, Noel diz, por
exemplo:
Eu
tentei me solidarizar com os grevistas (refere-se a uma greve de metalúrgicos),
tal como fiz aqui com os bancários, mas lembrei que aqui ainda eu consigo
alguma coisa e que em São Paulo ou Rio de Janeiro eu sou visado. Chico Buarque
quis cantar, não deixaram. E eu, pior ainda, porque eles pensam que o gaúcho é
mais valente que os outros
O aspecto propriamente musical de suas apresentações não era menos autêntico. Noel apresentava-se munido apenas da voz forte e do violão que sabia tocar magistralmente. Gostava de dizer que a música gaúcha começou a decair depois da introdução do primeiro instrumento alienígena: a gaita 3. Era, evidentemente, uma hipérbole: em Payador, Pampa, Guitarra deixou-se acompanhar pelo bandoneón de Raulito Barbosa.
O aspecto propriamente musical de suas apresentações não era menos autêntico. Noel apresentava-se munido apenas da voz forte e do violão que sabia tocar magistralmente. Gostava de dizer que a música gaúcha começou a decair depois da introdução do primeiro instrumento alienígena: a gaita 3. Era, evidentemente, uma hipérbole: em Payador, Pampa, Guitarra deixou-se acompanhar pelo bandoneón de Raulito Barbosa.
A
carreira de Noel Guarany durou pouco. Mas os três lustros transcorridos de 1970
— quando venceu o VII Festival do Folclore Correntino ao lado de Cenair Maicá
com a música Fandango na Fronteira em Santo Tomé, na Argentina — 1985 — quando
deixou os palcos em protesto contra o tratamento dispensado pelas grandes
gravadoras e pelo poder público à classe dos artistas -, foram suficientes para
que ele mudasse para sempre a história da música no Rio Grande do Sul.
Ainda
ensaiaria um retorno em 1988, com o lançamento dos discos A Volta do
Missioneiro, com Jorge Guedes e João Máximo e Troncos Missioneiros, este com
Jayme, Cenair e Pedro Ortaça, e algumas apresentações. Mas uma doença
degenerativa do sistema nervoso já o consumia de maneira irreversível. Passou
os últimos anos recolhido em sua casa, em Santa Maria, muito debilitado e com
alguns poucos lampejos de lucidez.
Em
abril de 1994, o jornal O Desgarrado, de Santa Cruz do Sul, foi visitá-lo. Foi
a última vez que recebeu a imprensa antes passar à eternidade, o que ocorreria
quatro anos depois. Já não conseguia articular idéias e responder às perguntas.
Em sua memória, só restava nítida a lembrança dos amigos: Cenair, Jayme,
Ortaça, Atahualpa Yupanqui e o uruguaio Aníbal Sampayo — e de como, em suas próprias
palavras, "gostava de ser cantor".
Morreu
no dia 6 de outubro de 1998, na Casa de Saúde de Santa Maria, tendo sido
enterrado em Bossoroca, sua terra natal.
TÚMULO DE NOEL GUARANY - BOSSOROCA RS. |
Discografia
- 1970 - Filosofia de Gaudério (com Cenair Maicá)
- · 1971 - Legendas Missioneiras
- · 1973 - Destino Missioneiro
- · 1975 - Sem Fronteiras
- · 1976 - Payador, Pampa, Guitarra (com Jayme Caetano Braun)
- · 1977 - Canto da Fronteira
- · 1978 - Canta Aureliano de Figueiredo Pinto
- · 1979 - De Pulperias
- · 1980 - Alma, Garra e Melodia
- · 1982 - Para o Que Olha Sem Ver
- · 1988 - A Volta do Missioneiro (com Jorge Guedes e João Máximo)
- 1988 - De Pulperias ( Relançamento )
- 1996 - 20 Preferidas
- 1998 - Acervo Gaúcho
- 2003 - Destino Missioneiro - (Ao Vivo - Remasterizado) é o registro de uma apresentação realizada por Noel Guarany no cinema Glória na cidade de Santa Maria, em 1980.
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