“Galpão, Pátria e Poesia. Três palavras consagradas, no final da madrugada se encontram pra clarear o dia, vão regendo a sinfonia de poetas e cantores, para que os madrugadores esperem o sol estribados, para alegrar nosso pago, com versos e melodias”

sábado, 30 de maio de 2015

ARTHUR BONILLA



As notas rápidas, a forma firme de tocar e a precocidade são características marcantes de Arthur Bonilla, tido por muitos como um dos maiorais do violão brasileiro.
Fez seu primeiro acorde com apenas 3 anos e meio de idade – segundo seu Pai, um Sol maior com todos os dedos errados, mas o som certíssimo – e, desde então, jamais parou de tocar.
Teve como principal referência, depois do Pai, as orientações e o estilo forte e veloz do grande violonista argentino Lúcio Yanel, erradicado no RS desde os anos 80.

Outra característica marcante na arte de Bonilla era a capacidade de desempenhar solos rápidos e duetados, como se fosse mais de um violão, habilidade que desenvolveu ainda menino. O contato com a música latino-americana, sobretudo do Uruguai, que usava muito os trios ou quartetos de violões, com um violão mais grave (chamado Guitarrón) de base e dois ou três solos duetando, no acompanhamento de cantores como Alfredo Zitarrosa, Amalia de La Vega e Nora Galán, lhe instigava a tentar tocar, reproduzindo o som tal e qual ouvira na gravação original, levando-o, então, a criar uma forma muito particular de execução: enquanto o Pai (que, por vezes, o acompanhava) fazia o violão base, Arthur Bonilla fazia os dois (às vezes três) solos duetados, copiando o arranjo original. Muitas vezes eram frases rápidas e de difícil execução para um único instrumentista, numa só vez.
Seguindo o caminho da música como profissão, logo começou a acompanhar cantores de expressão na música regional gaúcha (a exemplo de João de Almeida Neto, com quem tocava até hoje) e a participar dos festivais nativistas do RS. Inúmeras vezes premiado como melhor instrumentista nos mais importantes festivais gaúchos, Arthur Bonilla dedicou-se a música instrumental, apresentando trabalho solo ou com outras formações, tendo, no repertório, composições de autoria própria, clássicos da MPB, choro e música gaúcha, com breve passagem pela música erudita.
Dividiu o palco com grandes nomes da música instrumental do Brasil, como Dominguinhos, Hamilton de Holanda, Arismar do Espírirto Santo, Alessandro “Bebê” Kramer, Oswaldinho do Acordeom, Yamandu Costa e Renato Borghetti, tendo, com este último, trabalho de duo que realizava freqüentes apresentações por todo o Brasil e também no exterior, em países como Alemanha, Bélgica, França, Holanda, Itália, Portugal e Canadá.
Uma história linda, forjada no talento de um instrumentalista que conseguia transformar um violão em uma orquestra. Destemido nos palcos, arrojado, transformava notas em sinfonia e música em espetácula.
Dupla inseparável, Bonilla e o Violão, não passavam despercebidos, o estilo marcante e vibrante com que tocava, era inconfundível. mas, ontem o Violão silenciou e ficou órfão. Om músico - Violinista e Compositor - de Cruz Alta, Arthur Bonilla de 33 anos, morreu na manhã desta sexta-feira dia 29 de maio de 2015, em um acidente no Km 184 da BR-158 em Pejuçara.
Ele retornava de Palmeira das Missões, onde se apresentou no "30º Carijo da Canção Gaúcha", evento que procegue até domingo. Bonilla conduzia um Focus, placa de Tupanciretã, que saiu da pista e capotou, segundo a Polícia Rodoviária Federal de Cruz Alta-RS.
O clima é de tristeza em Cruz Alta e também em Palmeira das Missões, onde o músico tinha uma relação muito  forte com a comunidade, em função das suas participação no festival do Carijo.
De acordo com a PRF, a suspeita é que ele estivesse sem cinto. Não havia mais ninguém no veículo.
É triste ver um talento partir derrepente, mas conforta saber que a música de Bonilla está preservada na memória dos amantes da boa música e que a obra construída por Bonilla vai com certeza inspirar novos instrumentalista. Fica a incredibilidade, de saber mais que um jovem artista com uma carreira brilhante e que já alçava voos mais altos, com apresentação pelo mundo inteiro, foi interrompida por mais uma tragédia no trânsito. Encerro está homenagem dizendo: Obrigado por tudo, vai em paz e que Deus te receba de braços abertos, pois agora, tua obra é celestial, e serve de inspiração para os anjos...

FONTE:


sábado, 23 de maio de 2015

OS MONARCAS


Aquele que procura a história do grupo musical OS MONARCAS principia uma viagem através do tempo e da própria evolução da música regionalista gaúcha. Depois de tantos anos dedicados à música gauchesca, pode-se dizer que a história do conjunto OS MONARCAS e a história da música regionalista gaúcha são fenômenos indissociáveis, chegando mesmo a se confundir.
Comecemos esta narrativa em 18 de janeiro de 1942, data de nascimento do fundador do grupo: Nesio Alves Corrêa, o Gildinho, como é conhecido. Nascido em Soledade, numa família humilde e numerosa, foi criado em meio às lides campeiras. Muito cedo ficou órfão de pai e talvez tenha herdado dele, que era acordeonista, um irresistível amor à música gaúcha. Com apenas 15 anos este piazito já "arranhava" uma cordeona nos autênticos e saudosos bailes de candeeiro.
Este rapazote, que acalentava sonhos de vitória, em 1961 botou o pé no mundo, deu de rédeas no destino e encontrou paragem em Erechim/RS. Meio acaboclado, mas cheio de determinação, Nesio iniciou, em 1963, o programa radiofônico "Amanhecer no Rio Grande", pela Rádio Difusão de Erechim. Com a audiência do programa, passou a animar pequenos bailes na região, em 1966, o convite para apresentar o programa "Assim Canta o Rio Grande", na Rádio Erechim, que esteve no ar até 1984.
Em 1967 boleou a perna para Erechim o Chiquito, irmão caçula de Gildinho e Herdeiro da mesma paixão pela música. Unindo forças formaram a dupla "Gildinho e Chiquito", que foi o embrião do Conjunto Musical OS MONARCAS. Sem dúvida que a dupla de irmãos gaiteiros passou por momentos difíceis. Durante alguns anos penaram trabalhando exclusivamente em pequenos bailes na região de Alto Uruguai, apresentando diariamente o Programa "Assim canta o Rio Grande" e estudando acordem na Escola de Belas Artes.
Em 1969, apareceu em Erechim um compositor sertanejo em busca de novos valores. Benedito Seviero preparou a dupla "Gildinho e Chiquito" para gravar o seu primeiro disco. Porém, o esperado LP transformou-se numa decepção para a dupla, que viu seus anseios limitar-se a um inexpressivo compacto duplo, que hoje, é amarga lembrança de um tempo em que a música gaúcha encontrava caminhos pouco acolhedores para sua expansão.
Talentos musicais em formação, a dupla de irmãos escreveu sua história com muita dedicação onde, deu-se início ao Grupo OS MONARCAS em 1972. E quando a dedicação é acrescida pela sorte, os resultados são astuciosos. Foi o que ocorreu em 1976, quando num destes acasos da vida em que a sorte bate à nossa porta, três músicos: João Argenir dos Santos - guitarra, Luiz Carlos Lanfredi - contra-baixo, e Nelson Falkembach - bateria, se juntaram à dupla "Gildinho e Chiquito", nascendo então o Grupo Musical OS MONARCAS.
A união destes cinco talentosos músicos resultou harmoniosa, harmonia que à "lo largo" só fez crescer o nome do grupo que em 1978 gravou o primeiro LP (O Valentão Bombachudo) e desde então não parou mais, gravando sucessivamente, com breves intervalos de tempo, pela Gravadora Warner/Continental.
O 11ª CD, instituído "Cheiro de Galpão", destacou-se no cenário musical. Segundo pesquisa editada pelo jornal TOPSON (Cone Empresa Jornalística Ltda), o referido disco foi campeão de vendas no Brasil, dentro os álbuns regionais lançados, vendagem que rendeu ao grupo, em 1992, o 1ºDisco de Ouro.

No LP Fandangueando (8º) estreou a voz de Ivan Vargas, o atual vocalista do grupo, integrado à equipe desde 1985. Em 1990, para substituir o Chiquito - que se desvinculou do Grupo OS MONARCAS para fundar o grupo "Chiquito e Bordoneio" - juntou-se ao grupo o talento de "Varguinhas", excelente acordeonista que tem dado um brilho especial aos fandangos em que toca os MONARCAS. E em 1992, veio somar-se aos MONARCAS a categoria da gaita-ponto do "Chico Brasil", premiadíssimo instrumentista, ganhador de vários troféus (mais de 40) dos rodeios que participou.
O CD, "Eu vim aqui pra dançar", rendeu o 2º Disco de Ouro a este conjunto que também tem em seu currículo uma indicação ao Prêmio Sharp. Na opinião da crítica especializada, no ano de 1996, OS MONARCAS foram os melhores na animação de bailes do sul do país. No último acorde, neste ano, o conjunto ganhou, com o CD Rodeio da Vida, o troféu de melhor disco do ano, com destaque para a originalidade.
No ano de 1997, receberam o troféu "Laçador", como o melhor conjunto de animação de bailes do Rio Grande do Sul. Neste mesmo ano em Setembro, na sede do Clube Operário, em Curitiba, receberam o Troféu de Melhor Conjunto de Música Regionalista do ano.
O ano de 1999 foi um período de muitas novidades para OS MONARCAS, como a mudança de gravadora, da CHANTECLER para a ACIT, a gravação do 1º CD pela nova gravadora "Locomotiva Campeira" e já no final deste mesmo ano podemos contar com presença de Vanclei da Rocha, na percussão, juntando-se ao grupo, com toda alegria da juventude, agradando ainda mais os fandangos por este Brasil a fora. Já no ano de 2000, podemos prestigiar a presença deste maravilhoso grupo gauchesco, num dos maiores programas de TV o "Ratinho", cantando Coisa Irritante do cd "No Tranco dos Monarcas", animando a todos e nos enchendo de orgulho.
No ano de 2001 a gravação do CD "A Gaita dos Monarcas", que causou uma grande euforia aos que apreciam uma boa gaita, imagina só, três gaiteiro, é para deixar qualquer um de beiço caído. E no final desse mesmo ano, a regravação de 23 grandes sucessos no CD 30 anos de estrada dos Monarcas, veio para completar a alegria do povo.

 Em março de 2002, um dos prêmios mais esperado, se tornou realidade para este grupo na, 11ª edição "Prêmio Açoriano de Música" da Prefeitura de Porto Alegre em conjunto com a Secretaria Municipal da Cultura, na categoria de melhor grupo da música regionalista do estado. O selo "ISO TCHÊ", veio para confirmar a sua qualidade e autenticidade em tudo realizado. No início de 2003, podemos prestigiar o novo CD "Alma de Pampa", (22º CD), mais um trabalho gravado pela gravadora ACIT, com toda originalidade do tradicionalismo gaúcho.

OS MONARCAS - 30 anos de Estrada, com 23 grandes sucessos regravados rendeu ao grupo mais um Disco de Ouro (o 3º conquistado), que foi entregue em uma grande festa, em Erechim (na terra d´OS MONARCAS "como é chamada") no mês de novembro de 2003, pela vendagem de mais de 100 mil cópias. Já no início de 2004, veio à indicação ao Prêmio TIM DE MÚSICA, onde OS MONARCAS ficaram entre os três finalistas de todo o Brasil, na categoria grupo regionalista. O CD Só Sucessos está nas lojas com uma aceitação do público imensa, várias músicas lindas, mas uma em especial "O VENTO", não tem quem não goste.
Em abri de 2005, OS MONARCAS, receberam mais um Prêmio de PERSONALIDADE REGIONAL - TROFÉU LUCAS VEZZARO - no Clube do Comércio em Erechim/RS. Neste mesmo ano, em agosto, tiveram a participação no PROGRAMA RAUL GIL, divulgando a música gaúcha para todo o Brasil. Os músicos, além de interpretarem seus grandes sucessos, participaram do quadro do "Banquinho", onde os artistas brincam e concorrem a um prêmio simbólico em dinheiro. Essa experiência foi extremamente positiva. Foi um sucesso a participação d´OS MONARCAS no RODEIO DE BARRETOS/SP, na "NOITE DA VANERRA" e também uma excelente experiência.
Os Monarcas receberam do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, através da Secretaria de Estado da Cultura, o TROFÉU CULTURA GAÚCHA/2005 na categoria destaque musical no dia 26 de outubro em Porto Alegre.
O 4º Disco de Ouro da carreira pelo CD 'SÓ SUCESSOS', receberam em uma linda festa dia 14 de Janeiro de 2006, no CTG Galpão Campeiro, em Erechim, com a presença de mais de 1.500 convidados, fãs e amigos. Tour EUA em Maio, OS MONARCAS mostraram para os Norte-Americanos a música tradicionalista do sul.


As apresentações em Revere (Boston) no Clube Lido, e no CTG Distante da Minha Terra em Newark (Nova Jersey), foram um sucesso, o público dançou ao som fandangueiro d´OS MONARCAS.

É de se notar que este grupo, caracterizado especialmente por um ritmo de conotação alegre, fandangueiro, evolui paralelamente à música regionalista gaúcha, mas sempre mantendo seu estilo tradicionalista. Com 40 anos de estrada, o trabalho do Conjunto OS MONARCAS, com 37 CDs é um depoimento à causa gaúcha. Cada obstáculo resultou numa transformação positiva e a trajetória do grupo, numa efetiva contribuição à música regionalista do sul do país.

No mês de novembro de 2010 o grupo Os Monarcas conquistaram mais um troféu, o seu primeiro DVD de Ouro, e como não havia de ser diferente, foi lá no Sitio Novo que receberam este premio. Em Dezembro, o Grupo recebeu o premio Vitor Mateus Teixeira, como melhor grupo de baile, e o Chico Brasil ganhou como melhor instrumentista deste ano.




DISCOGRAFIA
1969: Os trovadores do sul
1971: Gaúcho divertido
1973: Galpão em festa
1980: Isto é Rio Grande
1982: Grito de bravos
1986: Chamamento
1988: Fandangueando
1989: Do Sul para o Brasil
1990: O melhor de Os Monarcas
1992: Os Monarcas
1996: Dose dupla - Volume I
1996: Dose dupla - Volume II
1996: Os sucessos do grupo Os Monarcas
1997: Do Rio Grande antigo
1999: Locomotiva campeira
2000: No tranco dos Monarcas
2001: 30 anos de estrada
2002: A gaita gaúcha dos Monarcas
2003: Alma de pampa
2003: Os 16 grandes sucessos de Os Monarcas
2004: Só sucessos
2005: Série duplo prá você
2005: Os sucessos do grupo Os Monarcas
2006: Recordando o tempo antigo
2007: Os Monarcas 35 Anos - Ao vivo
2006: DVD Os Monarcas 35 Anos
2008: A Marca do Rio Grande
2009: Os Monarcas Interpretam João Alberto Pretto
2011: Cantar é Coisa de Deus
2012: DVD Os Monarcas 40 anos


FONTE:


segunda-feira, 18 de maio de 2015

PAIXÃO CORTES

João Carlos D'Ávila Paixão Côrtes, nasceu na cidade de Santana do Livramento no dia 12 de julho de 1927 é um Folclorista, Compositor, Radialista e Pesquisador Gaúcho. É formado em Agronomia.
Ao preencher os espaços vagos no ÁLBUM NOSSO BEBÊ, comprado havia meses na Livraria A Predilecta em Bagé, Dona Maria Fátima D"Ávila Paixão caprichou na caligrafia. Na página da dedicatória, chamou o marido, que assinou Julio Paixão Côrtes no lugar destinado ao papai. Com carinho e cuidado, a mãe registrou os dados na página sobre o nascimento: às três da madrugada do dia 12 de julho de 1927, na casa número 101 da Rua Rivadávia Corrêa, nasceu em Santana do Livramento uma criança do sexo masculino, pesando quatro quilos e medindo 59 centímetros.
Entre os casacos, mantilhas e sapatinhos tricotados, estavam também a certeza de uma infância feliz e a paixão que começou desde guri. Na esquina da Rivadávia com a Rua Uruguai, entre a casa dos pais e a dos avós maternos, o menino João Carlos ouvia todos afirmarem: foi bem aqui que o argentino José Hernández, depois dos entreveros da Guerra do Paraguai, começou a declamar os primeiros versos do célebre Martim Fierro. Nada melhor para um moleque curioso, que um dia entregaria a vida à pesquisa da cultura popular.
Os pátios das duas casas - imensos - eram interligados. Em torno do poço, os jardins e a horta com abóboras, alfaces, couves, repolhos, nabos, beterrabas e cenouras. Mais adiante, o pomar com laranjas, pêssegos, uvas, bergamotas, limas, abacates. Tão grandes eram os pátios que o pai, técnico de ovinocultura da Secretaria da Agricultura, trazia cordeirinhos quando voltava das viagens de inspeção. Eram os bichos de estimação do guri que, adulto, enveredaria pela mesma profissão e se tornaria expert na classificação de ovinos.
Está no sangue, qualquer Ávila gosta de tocar um instrumento, cantar e dançar. Tem sido assim desde os primeiros que vieram do condado de Ávila, em Portugal. O avô, João Pedro Rodrigues Ávila, alto, moreno, bigodudo, tirava da gaita de oito baixos rancheiras e polquinhas de limpar banco. Foi repassando para o neto o gosto pelos ritmos e pelas coreografias das danças campeiras. E o piá herdou ainda a predileção por bigodes imensos, que se tornariam uma característica.
Bem que João Carlos tentou. Foi, durante dois anos, aluno assíduo e esforçado nas aulas de piano da Dona Mosquita. Aprendeu a ler partituras e a aprimorar o ouvido, lições que aproveitaria para sempre, mas desistiu de ser pianista. Nas festas dos Ávilas, passou a cantar e dançar. E o interesse pelas indumentárias pode ter nascido numa fusão cultural só possível no Carnaval: quando tinha cinco anos, usou pela primeira vez pilchas gaúchas. E lá se foi ele para o baile infantil de chiripá, lenço, bombacha, bota e chapéu virado na testa. Se tivesse na mão um laço não seria o esboço inicial de uma estátua?
O gosto pelos detalhes, pequenos requintes da vida doméstica e as manifestações culturais do povo rio-grandense, tudo com o jeito artístico dos Avilas, vem junto desde a Rua Rivadávia Corrêa.
Baixinha, delicada, a avó espalhava aromas de essências pela casa. Habilidoso, o avô sentava na frente de casa para esculpir palitos. Espalhava na calçada pedacinhos de sarandi bem maleável e, com faca afiadíssima, moldava centenas de palitos. Os prontos iam para caixas de chá da índia. Não havia visita que não saísse com uma caixinha de presente.
Quem é Ávila tem olhos vivos, contornados por olheiras. De tanto querer ver tudo. Movido por essa paixão, o guri de Livramento se mudou para Uruguaiana, onde foi escoteiro e craque de basquete. Quando estava mais taludo, veio de muda para a Capital, como aluno do internato do IPA. E aquele pimpolho do álbum Nosso Bebê um dia virou modelo de monumento, esculpido por Antonio Caringi. Adulto, chegou a 1m82cm. Mas a escultura de bronze inaugurada em 20 de setembro de 1958 na porta norte de Porto Alegre tem 4m45cm de altura, pesa 3,8 toneladas e está sobre um pedestal de granito de 2m10cm. De bom tamanho para quem nasceu com quatro quilos e 59cm.
O pai agrônomo e mãe dotada de boas qualidades musicais, Paixão Côrtes parece ter sintetizado essas duas marcas - formou-se em Agronomia também, e é artista também, não do canto mas da dança - e ao mesmo tempo parece haver ultrapassado os limites do que se poderia esperar de alguém com sua história. Por quê? Porque ele é um dos sujeitos diretamente responsáveis pelo nascimento da atual voga gauchesca. "Um dos" é muito pouco: Paixão Côrtes é o formulador e animador decisivo do movimento tradicionalista gaúcho juntamente com Luiz Carlos Barbosa Lessa (In Memorian) e Glauco Saraiva.
Ex-aluno do Colégio União quando seu pai era diretor da Estação Experimental de Uruguaiana, foi ele que carinhosamente deu o apelido para o Colégio União de Baio Velho. Também estudou no Instituto Porto Alegre e no Colégio Estadual Júlio de Castilhos.
A estrada foi longa e cheia de percalços. Começa, talvez, na vivência campeira. Segue na experiência de peão, desempenhada todas as férias, em contraponto com a vida escolar urbana em Santana, Uruguaiana e Porto Alegre, sucessivamente. Continua, quem sabe, na dura passagem em que perde o pai e precisa trocar o colégio privado pelo público, o diurno pelo noturno, a vida relativamente inconseqüente pelo trabalho.
Deslancha, a partir de 1947, quando se junta com amigos igualmente interioranos e saudosos da vida agauchada (entre os quais Lessa) e com eles literalmente inventa uma tradição: a de fazer vigília de um fogo tirado à Pira da Pátria, que arderá dali por diante pela imaginária, afetuosa, desejada "pátria" sul-rio-grandense.
Paixão Côrtes e Barbosa Lessa partem para a pesquisa de campo, para recuperar traços de cultura popular local eventualmente sobreviventes à avalancha da cultura norte-americana, quer dizer, estadunidense, que, vitoriosa na II Guerra, cobrou um preço alto das neocolônias. Paixão e Lessa, expressando ativamente o mal-estar do momento, partiram para a ação, viajando pelo Interior para salvar o passado da intensa voragem novidadeira. Estava sendo gestado o lado cultural-popular do tradicionalismo, antes mesmo de a palavra "folclore" entrar no discurso de todo mundo.
Paixão Côrtes não se limitou a isso. Serviu de modelo para a estátua do Laçador e foi garoto-propaganda televisivo, nos primórdios do veículo, vestido à gaúcha quando isso era ainda uma esquisitice.Em 1948, organizou e fundou o CTG 35 e, em 1953, fundou o pioneiro Conjunto Folclórico Tropeiros da Tradição.
Em 1956, Inezita Barroso gravou as músicas tradicionais gaúchas Chimarrita-balão, Balaio, Maçanico e Quero-Mana, Tirana do Lenço, Rilo, Xote Sete Voltas, Xote Inglês, Xote Carreirinha, Havaneira Marcada, recolhidas por Paixão Cortes e Barbosa Lessa.
Em 1958, Paixão Côrtes apresentou-se no Olympia de Paris, no palco da Universidade de Sorbonne, no Hotel de Ville, no Teatro Alhambra, além de clubes noturnos e cabarés. No mesmo ano foi convidado por Maurício Sirotsky para apresentar o programa Festança na querência na Rádio Gaúcha, que ficou no ar até 1967.
Em 1962, Inezita Barroso gravou as composições Tatu e Pezinho, recolhidas por Paixão Côrtes e Barbosa Lessa. No mesmo ano, recebeu o prêmio de Melhor Realização Folclórica Nacional.
Em 1964, apresentou-se na Alemanha, na Feira Mundial de Transportes e Comunicação, na cidade de Munique. Recebeu ainda, no mesmo ano, o prêmio de Melhor Cantor Masculino de Folclore do Brasil.
Em 1986, apresentou-se durante um mês na Inglaterra, divulgando traduções de seus livros para o inglês.
Em 1992, a estátua do Laçador, do escultor Antônio Caringi, para a qual Paixão Cortes posou em 1954, foi escolhida como símbolo da cidade de Porto Alegre.
Em 2001 proferiu palestra sobre a música gaúcha no VII Encontro Nacional de Pesquisadores da MPB, realizado no Teatro daUniversidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Em 2003 lançou seu novo manual, com mais danças, derivadas do primeiro. Por exemplo, Valsa da mão trocada, Mazurca Marcada, Mazurca Galopeada, Sarna, Grachaim.
Em 2009 foi nomeado cônsul cultural do Sport Club Internacional, pois, Paixão Côrtes tem sua história de vida intimamente ligada ao clube pois seu pai foi jogador do Clube nos primeiros anos de sua fundação e posteriormente seus tios tambem foram jogadores, em destaque o primeiro goleador do Inter Belarmino Carlos Leal D'Ávila.
Em 2010 é escolhido patrono da 56ª Feira do Livro de Porto Alegre. Recebeu também a Ordem do Mérito Cultural.

Como Agrônomo Paixão Côrtes foi responsável pela abertura de mercado da ovinocultura no Rio Grande do Sul. Foi ele quem trouxe da Europa novos métodos e tecnologias de tosquia, desossa e gastronomia, além de incentivar o consumo de carne ovina.
Começou a trabalhar na Secretaria da Agricultura aos 17 anos como classificador de lã. Em 40 anos de serviço, passou pelas Estações Experimentais de Pelotas, Santana do Livramento e nos Campos de Cima da Serra e em Porto Alegre, também como professor dos cursos de classificação de lã, ovinotecnista e, por fim, chefe do Serviço de Ovinotecnia.
Formado em 1949 em Agronomia, na UFRGS, Paixão Côrtes desenvolveu na Secretaria da Agricultura o trabalho de extensão no interior do Estado. Segundo ele, o fato de ser folclorista e "falar a mesma língua do homem do campo" facilitou a comunicação e a implantação de novas tecnologias.

O BLOG GALPÃO PÁTRIA E POESIA relembra a matéria coletada do Caderno Cultura, Jornal Zero Hora de, 15 de maio de 2004. Com textos de Luís Augusto Fischer (Escritor, professor de Letras da UFRGS) e Eduardo Wolf (Professor de Letras do Colégio Leonardo da Vinci). PAIXÃO CORTES fala com exclusividade sobre o período de gestação deste fenômeno absolutamente impressionante que é o mundo do tradicionalismo, dos CTGs, da identidade cultural gaúcha, que ele ajudou a estabelecer. Vida e obra associadas fortemente, as de Paixão Côrtes, um sujeito da maior relevância para entender nosso tempo.

Cultura - O senhor nasceu na zona rural?
Paixão - Não, nasci na cidade. A casa de meu avô ficava numa das principais ruas de Santana. Meu pai alugou a casa ao lado. na esquina e abriu uma parede, fazendo uma ligação entre as casas. Era praticamente uma casa só.

Cultura - Era uma família grande?
Paixão - Não, nós somos dois irmãos e uma irmã de criação. Meu avô materno era de Santana, Rodrigues D'Ávila; meu avô paterno era de Bagé, Paixão Côrtes. Meu avô materno sempre esteve ligado ao campo, tinha duas ou três estâncias no Interior, e eu me criei dentro delas. Desde pequeno, eu ia a essas estâncias, acompanhando meu pai, que era agrônomo, se formou em Porto Alegre e depois estudou nos Estados Unidos por cinco anos.

Cultura - Isso devia ser bem raro na geração dele, não?
Paixão - Sim, era excepcional. O bom foi que ele não teve apenas a vivência universitária, ele fez de tudo, foi peão de estância, conheceu bem a vida, como é o comum nos Estados Unidos. Aqui é que tem essa coisa de separação social. Ele trouxe essa bagagem norteamericana. Até na mesa se sentia a diferença, tinha doce e salgado ao mesmo tempo, a carne era quase crua, sucos, essa coisa do breakfast. Ele era funcionário da Secretaria da Agricultura e prestava assistência técnica naquela área de Santana do Livramento. Eu ia junto.

Cultura - Então a sua infância se divide entre cidade e campo sem distinção?
Paixão - Exatamente. Meu pai tinha uma chácara, um sítio, então permanentemente a gente ia para lá e fazia grandes festas. Ficava-se dois dias carneando, festeando, aí quando terminava um assado já carneavam de novo, lá vinha mais gente, e sesteavam debaixo das árvores mesmo, e seguia o baile. Era uma coisa.

Cultura - O seu avô também tocava?
Paixão - Sim, o João Pedro Rodrigues D'Ávilla. Eu tenho a gaita dele, de oito baixos. Sempre ouvi música em casa, era natural, nunca precisei procurar por isso.

Cultura - O senhor ficou em Santana do Livramento até quando?
Paixão - Até 1939, 1940. Eu tinha uns 12 anos. Fomos morar em Uruguaiana, porque meu pai foi nomeado diretor da Estação Experimental, um posto zootécnico bastante avançado.

Cultura - E a diferença entre as cidades?
Paixão - Em Santana tinha uma intimidade familiar, e em Uruguaiana meu pai ocupava um cargo importante do governo, então tinha uma outra ótica. Também por lá, ele me levava por tudo. Aprendi muito com ele me dizendo: "Olha lá, observa aquilo, tá vendo aquilo outro?".

Cultura - Quando o senhor veio a Porto Alegre pela primeira vez?
Paixão - Em 1935. Teve a exposição do centenário da Revolução Farroupilha, no que hoje é o Parque Farroupilha, e o meu pai era o responsável pela exposição da pecuária. Fez seleção dos grandes animais, etc. E eu andava com ele por tudo.

Cultura - Fez o primário em Santana?
Paixão - Fiz o primário em Santana, com os maristas, e depois fui para Uruguaiana, onde vem o choque, porque fui estudar no Colégio União, que era protestante, metodista. Meu pai queria que eu tivesse uma visão diferente das coisas. Ele via no colégio americano uma nova visão, um outro trato de responsabilidade, de ensino, de exigência.

Cultura - O senhor voltava para as fazendas com freqüência enquanto morava na Capital?
Paixão - Sim, nas férias eu ia para as estâncias de Bagé, de Júlio de Castilhos, de Cruz Alta, e lá desenvolvia toda a atividade normal de um peão de estância. E eram fazendas bem grandes, de duas léguas de campo, serviço puxado. Uma das sedes da fazenda do meu tio, lá em Cruz Alta. ficava num extremo, e o trabalho a ser feito estava a duas léguas. A gente tinha que acordar às quatro da manhã, ir a cavalo para chegar às sete e meia, mudar o cavalo, e aí começar o serviço. Hoje é que me dou conta como era puxado para um guri de 13, 14 anos, como eu. Era uma fazenda tradicional, tudo no laço, sedes grandes, 2 mil animais, fazendo tropa e tudo. De noite, festeava-se, carneava-se, para, na manhã seguinte, bem cedo, tudo de novo. Serviço mesmo. Então, tudo que falo nas minhas atividades, hoje, não foi de palco que aprendi. Foi muito espontâneo e real.

Cultura - Lembra das músicas que tocavam?
Paixão - Sim. Era o bugio, limpa-banco, havanera, chote, rancheira.

Cultura - Se cantava alguma letra, junto?
Paixão - Sim, as letras que se cantavam eram as décimas. A Décima do Cavalo Baio, O Boi Barroso ...0 Boi Barroso é a mais expressiva manifestação da literatura galponera. Fora isso, umas valsinhas campeiras.

Cultura - Voltando à sua trajetória, o senhor disse que veio estudar no IPA. E depois?
Paixão - Logo depois, quando tinha uns 17 anos, perdi meu pai, o que mudou toda a estrutura familiar. Tive que trabalhar e tudo o mais. Até os 17 eu tinha aquela vivência campeira. Ficava no campo do primeiro ao último dia de férias, na lida bruta, com animais, e doma daqui, e monta dali, e ginetea, e derruba, e cai e se quebra todo, e segue. E diariamente! Não era uma prova. Não tinha essas frescuras de hoje, de concurso e tal.

Cultura - O senhor teve que trabalhar e começou com o quê?
Paixão - Na Secretaria da Agricultura. O meu pai se dava muito bem com todo mundo lá, e como eles souberam da situação, disseram: "Vamos chamar o Paixãozinho", que era como eles me chamavam. Ou então era o "Peruzinho", porque o apelido do meu pai era "Peru". Então comecei no serviço de Ovinotecnia com o doutor Geraldo Veloso Nunes Vieira.

Cultura - E o senhor continuava estudando? 
Paixão - Comecei a estudar no Julinho, de noite, em 1946. Terminei o curso científico em 1947. Então me oportunizaram um curso sobre técnicas de classificação de lã, e aí me especializei.

Cultura - Em que ano entra na faculdade?
Paixão - Em 1949, Agronomia, na UFRGS.

Cultura - Fez o curso normalmente.
Paixão - Não muito normalmente. (Risos). Porque aí eu começo a verificar essa ausência de preservação dos valores e da cultura gaúcha. Sou produto da II Guerra Mundial.

Cultura - O que o senhor lembra da guerra?
Paixão - Ah, eu acompanhava, mas nessa época já estava trabalhando e me mandam para o Interior, para o maior centro de comercialização de 1ã, Pelotas. Era um porto de alta responsabilidade. Eu tinha 17, 18 anos. Era tuna pegada violenta. Eu tinha que reformular a técnica toda, com 18 anos, para os velhos comerciantes (risos). Imagina, um guri chegando e dizendo: "Pára tudo!" (risos). Foi uma barra. E eu tinha que fazer o Tiro de Guerra, uma ou duas vezes por semana, à noite. Numa dessas noites, tomei o leite quente e me deitei com a galena nos ouvidos - nem bem rádio era - e ouvi: "Terminou a guerra!". Aí me vesti e saí para a rua, tinha toda a comemoração das pessoas nas ruas. E depois da guerra é que se intensificou a mudança no comportamento brasileiro e rio-grandense, porque os americanos descarregaram todo 0 poder econômico. que mudou tudo.

Cultura - No que o senhor via a chegada americana?
Paixão - Na música, que passou a ser a norteamericana: blues, jazz, as grandes orquestras, Tommy Dorsey, Glenn Miller. No cinema. Nos livros de tradução americana, bem comuns nessa época. O Capitão América. A Coca-Cola. Nem Coca-Cola tinha até então. Houve aí um episódio curioso. Como meu pai tinha revistas americanas, em que aparecia a Coca, eu tinha vontade danada de tomar aquilo. A gente só tomava guaraná. Aí fomos o Lessa e eu tomar Coca-Cola, num barzinho qualquer do Centro. Coloquei no copo, vi aquela coisa meio espumosa, provei. E achei aquele troço meio amargo (risos). Aí diziam que o bom era adocicar a Coca-Cola. Bom, coloquei açúcar e pum! (faz o gesto de explosão, com as mãos). Foi uma das imagens mais esquisitas... (risos)

Cultura - Como é que foi a idéia de fundar o "departamento de tradições" no colégio?
Paixão - Departamento de Tradições Gaúchas do Colégio Júlio de Castilhos. Como eu estava ausente da vivência contínua com a vida na campo que me era familiar, eu comecei a conversar com as pessoas e fui vendo que um era de Cruz Alta, outro de Bagé, não sei mais onde. E aí combinávamos: "Aparece lá para tomar um mate". Tomar mate, naquela época, só dentro de casa. Na rua, nem pensar. Nem na porta de casa. Bombacha ninguém ousava vestir em Porto Alegre.

Cultura - O senhor chegou a se sentir discriminado em Porto Alegre?
Paixão - Discriminado, propriamente, não. Porque quando nós entramos nessa história estávamos firmes: "Queremos isso, e ponto. As conseqüências, a gente vê depois. Tem que dá-le pau, dá-le pau" (risos).

Cultura - Mas antes de formar o departamento, o senhor chegou a se sentir constrangido pelos hábitos da cidade?
Paixão - Não. Eu tinha uma certa intimidade já com a vida de Porto Alegre. Mas acontece que na época estava se vivendo a ditadura Vargas. Tinha-se medo de ter uma bandeira do Rio Grande do Sul. As bandeiras regionais foram queimadas. Aqui nós escondemos, não queimamos, mas não podíamos usar, mostrar. Meus tios, por exemplo, eram muito pela preservação dos valores, além de serem veladamente contra o Vargas, então a gente ouvia essas coisas: "Cuida com o DIP" (Departamento de Imprensa e Propaganda). E aí isso já se misturava com o comunismo, tudo parecia uma coisa meio nebulosa. Por exemplo, além de não se ver a bandeira, não se cantava o hino. Então o pessoal do Interior se reconhecia no Colégio, se identificava. Começamos a nos encontrar para tomar mate, contar histórias. Coisa de galpão, mas como não tinha galpão, a gente inventava um. E nessa época praticamente não havia literatura regional. O único que ainda sobrevivia era o Vargas Neto. E o Antônio Chimango, é claro. Mas era uma literatura mais rebuscada. não a coisa galponeira a que nós estávamos acostumados. Daí surgiu a nossa idéia.

Cultura - Vocês logo perceberam que o Colégio Júlio de Castilhos poderia abrigar essa iniciativa?
Paixão - Ah, não foi tão simples. O negócio é que eu botava bota e bombacha e ia para a aula. E era aquele comentário só. Eu morava na Sarmento Leite, e o Júlio era o antigo, ainda (na João Pessoa, onde fica hoje a Faculdade de Economia da UFRGS). De noite, eu ia pilchado. Quando fazia frio, ia de poncho. Chovia, botava um chapéu. O pessoal falava: "Olha o guasca de fora", "Olha o guapo". E eu não me ofendia, sabia o que eu era, eles não estavam me ofendendo ao dizer aquilo.

Cultura - E as moças?
Paixão - Não tinha esse contato com as mulheres. Por exemplo, o galpão era só homem. Quando fundamos o 35, era só homem. E o galpão é a célula fundamental da nossa gente. Nós nos criamos ali, em volta, tomando mate. As moças não participavam. Elas estavam em outra. "Miss", "Star", tudo nome americano. E eu fui indo, vestido assim. Foi aí que eu comecei a pensar: por que a gente não faz um núcleo de resistência a essas loucuras norte-americanas e tudo o mais que está aí? Fui bolando, pensando, sozinho. E o Grêmio Estudantil tinha de tudo - esperanto, teatro, e não sei mais o quê. Fui nas reuniões, três sábados seguidos, e era sempre a mesma coisa: "Não sobrou tempo para ti, Paixão". Tudo bem, lá ia eu no outro sábado de novo. Um dia expus a coisa: "Acho que a gente deveria preservar as nossas tradições", etc., preparei um arrazoado. Tinha a Chama da Pátria, no 7 de setembro, data magna da pátria. Foi aí que tive a idéia de tirar uma chama da pira da pátria e levar para o Júlio de Castilhos, fazer uma continuidade da chama da pátria, lá num candeeiro, até o 20 de setembro. E o pessoal dizia: "Mas como?". Então fui na Liga de Defesa Nacional, um órgão muito importante na época, eu conhecia o major Vignolli, apresentei minhas intenções, numa carta que nós tínhamos preparado. Ele me perguntou: "Então, qual é a idéia?". E eu, numa insolência que só hoje percebo, respondi: "Vou tirar uma centelha da pira da pátria para levar para o Colégio Júlio de CastiIhos". Imagina, eu com 18, 19 anos. Aí ele chamou um sujeito: "Ô Pimentel, vem aqui". O sujeito chega e diz: "E aí, Paixãozinho, como é que vai?", todo entusiasmado. Era amigo do meu pai, com quem tinha trabalhado lá em Santa Maria, me conhecia desde pequeno. E perguntou: "O que é que tu estás fazendo aqui?". A idéia era prolongar do 7 de setembro até o 20, da Revolução Farroupilha. Aí eles me perguntaram como é que eu queria fazer isso, se era a cavalo, como é que era e tal. Eu tinha pensado em três cavalos - um com a bandeira do Rio Grande, outro a bandeira do Colégio Júlio de Castilhos e outro com a bandeira do Brasil.

Cultura - E quem eram os seus parceiros?
Paixão - Eram o Ciro Dutra Ferreira e o Fernando Machado Viana. Na saída, o doutor Pimentel me disse que estavam trazendo os restos mortais do Davi Canabarro. Quem traria era o Coronel Canabarro. Eu disse: "Mas ele é casado com uma prima minha!". Enfim eu estava em casa! Então ele me diz: "Estamos com um problema: não arrumamos gaúchos para fazer um costado (guarda de honra). Tu não me arrumas uns gaúchos". E eu: "Para quando?"

Cultura - O que ele queria dizer com "gaúchos"? Por que ele os queria?
Paixão - Porque o Davi Canabarro era uma figura da Revolução Farroupilha, da Guerra do Paraguai, e era para ser trazido para o Pantheon do Rio Grande. Um negócio cívico. Disse para ele que ia tentar, fui falando com um e com outro, fazendo uma exaltação do Canabarro. Convencia um, que convencia outro. Mas aí não tinha arreio. E cavalo? Não tinha. Fui falar com o doutor Pimentel: "Olha, consegui um piquete bom. Gente firme. Mas não temos cavalo, nem arreio". O doutor Pimentel disse que conseguia os cavalos, do Regimento Osório. "E os arreios?", perguntei. "Isso vai ser dificil". Falei para ele: "O senhor me arruma uma caminhonete e dois homens que eu dou um jeito". Cinco horas da manhã saímos em direção a Belém Novo. Foi clareando o dia e iam aparecendo aquelas figuras a cavalo; eu mandava parar a caminhonete e começava a dar um discurso sobre o gaúcho, a pátria, o gauchismo, e os caras ficavam atônitos (risos). Assim arranjei 14 arreios. Só na palavra! Devolvi um por um, eu mesmo. Montamos os arreios e conseguimos oito pessoas. Faltou gente para montar, as pessoas ficavam com vergonha. Tu podes imaginar oito loucos vestidos de gaúcho, de faca?

Cultura - E o que as pessoas achavam?
Paixão - Não dava para achar, porque a gente "nem tava"! E as pessoas ficavam atônitas. Viemos lá do Regimento Osório, descemos a antiga Rua da Conceição e apertamos os arreios defronte ao Hotel Umbu. Nós íamos ficar por ali, tomando um trago e tudo o mais, esperando o cortejo que vinha do aeroporto. Chega a polícia: "Estão armados? Não pode. Estão presos". E aí começou a argumentação.

Cultura - O senhor era o embaixador deles? 
Paixão - Não, todo mundo falava. Menos o Siqueirinha, que até hoje não fala (risos), o Antônio João Sá de Siqueira, médico veterinário.

Cultura - A polícia queria levar você?
Paixão - Queria. Um deles perguntou: "De onde o senhor é?". Eu respondi. E ele: "Mas é lá dos meus pagos!". E nos encontramos. Aí um dos policiais disse para gente cobrir a faca com o pala para não ficar mal para eles. Nisso passou o jipe com os restos mortais do Canabarro, montamos e fomos atrás. Seguimos em direção ao Centro, até a Praça da Alfândega. Ali, numa solenidade, com escolas, políticos e tal, não hastearam a bandeira do Rio Grande, nem tocaram o nosso hino. Só o hino nacional. Houve uma saudação do dr. Dante de Laytano, não lembro de quem mais. Ficamos por ali, ao lado da Brigada. Nesse momento, um guri pequeno e magrinho veio nos procurar. Falou com o Ciro Dutra Ferreira: "De onde é que vocês vieram?". E o Ciro: "Daqui mesmo, estudamos ali no Júlio de Castilhos". E o magrinho: "Mas como? No Júlio? E como é que eu não sei disso?". Ele estudava de tarde, e nós de noite. Aí o Ciro mandou ele falar comigo: "Fala com aquele bigodudo lá da ponta". Combinamos que ele iria aparecer de noite lá no Júlio. Era o Barbosa Lessa.

Cultura - O que lhe chamou atenção nele?
Paixão - As coisas que ele falava sempre estavam relacionadas à História. Ele sempre costurava com uma referência da História. Não era um homem campeiro, com a linguagem campeira, apesar de ter uma experiência parecida com a nossa. E ele tocava violão, já arranhava umas quadrinhas. Depois disso é que veio a Ronda Crioula, a Semana Farroupilha, o Candeeiro Crioulo, apareceram outros que não eram gaúchos nem nada, eram simplesmente urbanos. como o Ivo Sanguineti, que era um cara dedicadíssimo, dormia lá para que o fogo não apagasse, E foi até o dia 20 de setembro, com palestra com o Manoelito de Ornelas.

Cultura - Como é que o Manoelito de Ornetas, que era um grande intelectual, foi até o colégio, para falar com uns guris gaúchos?
Paixão - Eu é que o convenci. Peguei o Ciro e fomos até a casa do Manoelito. Ele tinha a Prosa da Terças, seção do Correio do Povo; então nós ligamos e nos apresentamos: "Olha, nós somos estudantes, o senhor poderia nos receber?". Apresentamos para ele o que estávamos fazendo e pedimos para ele falar. Na época ele estava lançando o livro Gaúchos e Beduínos. Quem acabou ficando na conferência foi o Lessa, porque foi de tarde, e eu tinha que trabalhar. Mas o melhor é o seguinte: convidamos o Manoelito para ser jurado do baile! Não sei até hoje como tivemos a petulância de fazer uma coisa dessas... O baile foi lá em Teresópolis.

Cultura - A idéia era fazer uma representação da vida campeira?
Paixão - Não! Para reviver! Não tinha nada de patacoada! Era reviver os nossos hábitos, puramente. Café de chaleira, pastel de carreira, fogo no chão, fumaça. E a música foi uma coisa! Falei com um. maestro e pedi uma banda para o baile e ele me disse: "Eu tenho bandinha". Era dessas de alemão. Aí não dava! (risos). Mas ele me disse: "Eu te arrumo gaiteiro, tocador de violão e tal".

Cultura - Qual era o repertório?
Paixão - Rancheira, xote, polca, de vez em quando tocavam um dobrado, desses da zona alemã, umas marchinhas meio cívicas...

Cultura - E o Manoelito de jurado?
Paixão - No meio daquela bagualada... (risos). O Ciro e eu fomos buscá-lo de auto, pilchados, e ele todo formal, de gravata. Ele ficou encantado. Escreveu uma crônica, depois, contando do baile e dizendo aquilo que nós tínhamos explicado para ele - para nós, não se tratava só das roupas, das danças, era também a dignidade, a moral do nosso povo.

Cultura - Vocês falavam abertamente sobre esse desconforto com o americanismo?
Paixão - Sim! Era só uma questão de analisar, de observar: o que é que tinha de música nossa? O Boi Barroso, Prenda Minha, Gauchinha e Minuano.

Cultura - E como foi a expansão do movimento, da idéia de tradicionalismo?
Paixão - Fundamos o Departamento, com aquela loucurada toda de trazer a chama e o ato cívico que se seguiu, o baile com mais de 200 pessoas, e depois nós perguntamos: "E agora?". Porque aí mais gente apareceu, gente que nem nos conhecia, e foi então que o Lessa disse: "Temos que nos reunir para formar um clube de tradições". Ele saiu por aí com um caderninho pegando nome e endereço de tudo que era gente interessada em participar e começamos a nos reunir na minha casa, o nosso primeiro quartel-general, e foi enchendo de gente. Aquilo começou a crescer, começou a chegar mais gente, gente de cabeça branca, gente séria...

Cultura - O senhor conheceu o Aureliano de Figueiredo Pinto?
Paixão - Não. Os literatos não existiam na forma da popularidade. Quem é que ia dizer verso do Aureliano? Tinha que ser declamador ou o próprio poeta. Declamador não tinha, ninguém queria se expor ao ridículo de dizer versos. Nós vínhamos de baixo, e a literatura era para os nobres. os sábios, os intelectuais, os dominadores da lingüística...

Cultura - E o senhor se lembrava do seu pai, por essa época?
Paixão - Sim, porque o meu pai, quando eu estava em Uruguaiana, comprava uns livrinhos. Queroquero, do Roque Callage, e me fazia ler. E lá em Uruguaiana tinha o Grêmio Literário Castro Alves. E nós éramos da campanha, então fundamos um grêmio literário Catulo da Paixão Cearense.

Cultura - Por que o Catulo?
Paixão - Porque era um poeta popular. falava das coisas da terra, com termos regionais. Eu era muito - guri, não cheguei a fundar, mas estava lá. Só declamava noemas do Paulo Setúbal, João, o Tropeiro. E foi ai que eu comecei a aprender a declamar.

Cultura - Vocês se sentiam fora disso?
Paixão - Não, é que nós vivíamos e os outros cultuavam (risos). Até aproximar uma coisa da outra, levou tempo. Eu fui um dos primeiros a sair por aí á declamar versos e tudo mais.

Cultura - Como é que o senhor e o Lessa começam a fazer pesquisas de cultura popular?
Paixão - Quase não havia elementos para se consultar. A gente ouvia coisas de citação. Queríamos sedimentar nossa cultura, formar a sociedade tradicionalista. Quando a gente foi registrar o 35 no cartório, não permitiram! Tivemos que mudar "patrão" para presidente, "capataz" para, sei lá, "vice-presidente". Para sedimentar a simbologia do universo da estância, a idéia do patrão, do capataz, do posteiro, da invernada, não foi fácil. E também tinha muito gaudério meio grosseirão, que ia mais pela patacoada, e nós tínhamos que controlar.

Cultura - E suas pesquisas com o Lessa? Ele era o seu maior interlocutor?
Paixão - Sim, havia uma identificação muito forte. Então veio um convite do governo uruguaio para uma representação brasileira de gaúchos no Dia de la tradición, em Montevidéu, em 1949. Mas aí vieram os gaúchos das guerras de 93 e 23 com as papagaiadas. "Porque eu sou maragato!", dizia um, aqui, e outro vinha com "Eu sou pica-pau", e nós tivemos que afastar isso "Aqui não se discute isso!". Os ânimos estavam assim, ainda mais que tinha acabado o Estado Novo, tinha um clima de revanche, de acerto de contas.

Cultura - Como se dá a fundação do 35?
Paixão - O nome nós decidimos numa reunião em 5 de janeiro de 1948, mas a fundação foi em 24 de abril. E quando veio o convite uruguaio, o governo de Walter Jobim viu que o CTG 35 era uma gurizada e achou melhor, por precaução, mandar junto uns oficiais da Brigada, uns tipos excelentes. Em Montevidéu, desiflamos e declamamos, foi uma beleza! Aí chegou a hora da dança. E os castelhanos nos perguntavam: "Que danças vocês têm?!

Cultura - Que danças vocês tinham?
Paixão - Nós não tínhamos nada. E o que eu me perguntava era como os argentinos e os uruguaios tinham aquele monte de dança e nós não tínhamos nada. E o Lessa dizia "O Cezimbra Jacques diz isso, O Walter Spalding aquilo." Ele já tinha lido tudo.

Cultura - E já existia a noção de folclore?
Paixão - Não! Não tinha nada. Em 1947 foi a Unesco que definiu um apoio ao folclore, da Unesco se chegou à Comissão Nacional, e a Regional só se fundou aqui em 1948, depois da fundação do 35.

Cultura - E vocês se identificavam com a palavra "folclore"?
Paixão - Não, para nós a palavra era "tradição". Hábitos e costumes dos nossos antepassados. Foi daí que começou a nossa pesquisa. Não tinha descrição nenhuma, partitura nenhuma, então o Lessa e eu começamos a procurar. Eu viajava muito, pelo serviço, então íamos cada um para um lado. Começou em Palmares. Eu estava falando com um rapaz sobre danças tradicionais e ele me falou da tal "dança do pezinho". Eu não sabia: "Que dança do pezinho? Vocês dançam isso?" E o cara: "Claro, lá na praia, nas festas". E aí formou-se um grupo e nós fomos a Palmares para pesquisar. Bem, se a cem quilômetros de Porto Alegre tem uma dança dessas, como é que não vai ter por esse Estado inteiro?

Cultura - E o senhor viajava mas era funcionário da Secretaria de Agricultura, ainda?
Paixão - Sim, era só nos finais de semana que dava para fazer a viagem. Um dia o Ênio Freitas e Castro, que era da Secretaria de Educação, emprestou um gravador primitivo. Eu pagava duas passagens e levava o gravador.

Cultura - E quem é que custeava?
Paixão - Ora, quem é que custeava, eu! (risos). Já era loucura falar no assunto, imagina que alguém ia dar dinheiro para essas bobagens (risos).

Cultura - Quando é que se dá a fundação do grupo de dança?
Paixão - Em 1953, com Os Tropeiros da Tradição. De 1949 a 1952, o Lessa e eu juntamos 20 e poucas danças.

O folclorista João Carlos D'Ávila Paixão Côrtes é uma figura inesquecível em vários sentidos, incluindo o sentido da audição: as pausas, as ênfases, as exclamações, as suspensões, os "Bá" alongados, a entoação para acompanhar a referência a uma antiga canção, assim é PAIXÃO CORTES

PAIXÃO CORTES como:

APRESENTADOR E PRODUTOR DOS PROGRAMAS RADIOFÔNICOS:
1953 - Festa no Galpão
1955 - Grande Rodeio Coringa
1958 - Festa

COMPOSITOR:
Jacaré
Ratoeira
Xote carreirinho

ATOR:
1971 - Um Certo Capitão Rodrigo, de Anselmo Duarte, baseado na obra do escritor gaúcho Érico Veríssimo, no papel de Pedro Terra.

DISCOGRAFIA
s/d - Xote carreirinho / Jacaré
1961 - O folclore do pampa
1964 - Tradição e folclore do Sul
1970 - Paixão Côrtes (sobre o folclore gaúcho)
1977 - Do folk aos novos rumos
1978 - Paixão Côrtes especial
1980 - Hino ao Rio Grande
1982 - Cantando e bailando
1982 - Cantares e sapateios gaúchos

BIBLIOGRAFIA
1955 - Suplemento musical do Manual de danças gaúchas (com Barbosa Lessa)
1956 - Manual de danças gaúchas (com Barbosa Lessa)
1959 - Festança na querência (sobre folclore gaúcho)
1960 - Terno de Reis - Cantigas do Natal gaúcho
1960 - Folclore musical do pampa - Músicas e letras
1961 - Vestimenta do gaúcho
1966 - Gaúchos de faca na bota - Uma dança alemã no folclore gauchesco
1975 - Danças e andanças da tradição gaúcha (com Barbosa Lessa)
1985 - Aspectos da música e fonografia gaúcha
1994 - O Laçador, a história de um símbolo
1994 - colaborou na produção da coletânea A música de Porto Alegre - as origens
2001 - Músicas, Discos e Cantares - Um resgate da história fonográfica do Rio Grande do Sul

FONTE: